quarta-feira, 30 de abril de 2008

Os Pré-Socráticos

É durante o período que se estende aproximadamente do século VI a.C. ao início do século IV a.C., que viveram na Grécia antiga filósofos de idéias diversas, conhecidos conjuntamente como “Pré-Socráticos”.
Os historiadores da filosofia grega costumam distinguir neste período quatro grandes tendências ou escolas que não são sucessivas mas, em geral, coexistentes, embora os continuadores não mantenham a totalidade das idéias dos fundadores. São pré-socráticas pelos temas que abordam e não porque todos os seus membros teriam nascido e vivido antes de Sócrates. As escolas pré-socráticas são assim designadas para indicar aquele pensamento cuja preocupação central e cuja investigação principal eram a phýsis. São as escolas de cosmologia ou de física (no sentido grego desse termo).

As escolas de cosmologia ou física:
1 – Escola Jônica (Ásia Menos), cujos principais representes são Tales de Mileto, Anaximandro de Mileto, Anaxímenes de Mileto e Heráclito de Éfeso;
2 – Escola Pitagórica ou Itálica (Magna Grécia), cujos principais representantes são Pitágoras de Samos, Alcmeão de Crotona, Filolau de Crotona e Árquitas de Tarento;
3 – Escola Eleata (Magna Grécia), cujos principais representantes são Xenófanes de Colofão, Parmênides de Eléia, Zenão de Eléia e Melissos de Samos;
4 – Escola Atomista (Trácia) principais representantes: Leucipo de Abdera e Demócrito de Abdera;
Essa classificação apresenta um problema porque nela não há lugar para dois dos maiores filósofos pré-socráticos: Empédocles de Agrigento e Anaxágoras de Clazómena. Por esse motivo, preferimos propor que a quarta escola receba uma outra denominação. As três primeiras escolas possuem em comum o fato de tratarem a phýsis como unitária, enquanto os atomistas, Empédocles e Anaxágoras concebem a phýsis como pluralidade.
4 – Escola da Pluralidade, cujos principais representantes são os atomistas Leucipo e Demócrito de Abdera, Empédocles de Agrigento e Anaxágoras de Clazómena. São os filósofos que tentaram conciliar Heráclito e Parmênides para salvar a filosofia de sua primeira grande crise.

Nascimento da Filosofia e seu vocabulário

A filosofia nasce como cosmologia, isto é, voltada para a explicação da natureza (o princípio primordial gerador de todas as coisas, o processo de formação e de ordem do mundo, o ciclo das gerações e dissoluções da realidade), porque ela nasce no contexto da pólis, há, como diz Jaeger, “uma projeção da pólis no universo”, isto é, o vocabulário das relações sociopolíticas e morais é o vocabulário usado para explicar a natureza.
Cosmos significa, inicialmente, a ação das pessoas num comportamento conforme estabelecido; depois, indica a ação humana que produz ordem nas coisas; e, finalmente, com a filosofia, passa a referir-se à ordem e organização do mundo. Os primeiros filósofos afirmam que o cosmos é uma ordem regrada ou normativa, aítia (seu sentido está no campo jurídico dos gregos antigos). Na ordem natural, as coisas se unem e se separam segundo regras e causas, e a união e a separação entre as coisas são expressas no vocabulário das paixões: amor (éros) e ódio (neîkos).
Alétheia, lógos, kósmos, díke, aítia, éros, neîkos são conceitos-chave da cosmologia (e de toda a filosofia grega), mas esse quadro só se completa acrescentando, necessariamente, mais três conceitos constitutivos do nascimento da filosofia e de sua história: arkhé, phýsis e kínesis.
Os primeiros filósofos buscam a arkhé, o princípio absoluto (primeiro e último) de tudo o que existe. A arkhé é o que vem e está antes de tudo, no começo e no fim de tudo, o fundamento, o fundo imortal e imutável, incorruptível de todas as coisas, que as faz surgir e as governa. É a origem, mas não como algo que ficou no passado e sim como aquilo que, aqui e agora, dá origem a tudo, perene e permanentemente.
Phýsis possui três sentidos principais, derivados da idéia de um processo de fazer surgir e desenvolver-se: 1 – a ação de fazer nascer, formação, produção; 2 – a natureza íntima e própria de um ser, a maneira de ser de alguma coisa, a disposição ou caráter espontâneo e natural de um ser; 3 – a natureza como força criadora e produtora dos seres, a constituição geral de todos os seres. É a fonte originária de todas as coisas, a força que as faz nascer, brotar, desenvolver-se, renovar-se incessantemente; é a realidade primeira e última, subjacente a todas as coisas de nossa experiência. É o que é primário, fundamental e permanente, em oposição ao que é segundo, derivado e transitório. É a manifestação visível da arkhé, o modo como esta se faz percebida e pensada.
A phýsis é alétheia: o ser que não é esquecido, que é permanentemente lembrado porque está manifesto perpetuamente. A alétheia grega se diferencia da nossa verdade- “adequação estabelecida entre aquilo que representamos e aquilo que percebemos e, por outro lado, na conformidade existente entre o que enunciamos e os princípios lógicos que regem o nosso pensamento-, alétheia, em grego, é formada pela palavra léther - que significa noite, escuridão, esquecimento -, acrescida da primeira letra do alfabeto grego, a, que possui um sentido privativo. A-létheia, a verdade, significa rigorosamente não-noite, não-escuridão, não-esquecimento, traduzindo-se, positivamente, como desvelamento. Os Pré-Socráticos oferecem explicações inéditas acerca da origem das coisas sensíveis (desligadas das explicações míticas), trazendo uma nova alétheia como proposta de conciliação do homem com a totalidade natural. Os Pré-Socráticos inauguram uma nova maneira de pensar: o lógos, o discurso racional da Filosofia como explicação das origens e do funcionamento da Natureza.”


A phýsis por ser manifestação da arkhé e a totalidade do que é, por ser o fundo perene e imortal de tudo o que nasce e morre, os primeiros filósofos afirmaram que “nada vem do nada e nada retorna ao nada”. Não há o nada. Há phýsis. Por isso os primeiros filósofos são chamados “homens da phýsis”, physiologói, isto é, físico. Porque nada vem do nada, porque a arkhé e a phýsis são eternas, a física grega – isto é, a cosmologia – afirma: o mundo é eterno; e declara: não há criação do mundo a partir do nada.
O que espanta os primeiros filósofos ou físicos, o que lhes causa admiração e melancolia é a perpétua instabilidade das coisas, sua aparição e desaparição, o nascimento e a morte, a geração e a corrupção dos seres. Numa palavra, a mudança. Kínesis significa movimento. Mas, em grego, movimento não é, como para nós, apenas locomoção ou mudança de lugar.


Movimento são todas as mudanças que um ser pode sofrer: mudanças qualitativas, quantitativas e de lugar. E também nascer e perecer. Os primeiro filósofos – e depois deles, toda a filosofia – se espantam com a kínesis, com o movimento ou, como escrevem os historiadores da filosofia, com o devir incessante da natureza, da qual o homem é parte.
Se quiséssemos resumir as preocupações que se manifestam no nascimento da filosofia, diríamos que estão nas perguntas sobre o kósmos, a phýsis e a kínesis.
Qual é a origem de todas as coisas? Como um único princípio pode dar origem à multiplicidade das coisas? Como aquilo que permanece sempre jovem, imortal e idêntico a si mesmo pode dar origem ao que é diferente dele, perecível e múltiplo? Como o uno dá origem ao múltiplo? Como e por que as coisas se movem? Como o imutável pode dar origem ao mutável? Como o múltiplo retorna ao uno?

As principais características da Filosofia nascente conforme Burnet:

1 – é uma cosmologia, isto é, uma explicação racional sobre a ordem presente ou atual do mundo: sua origem ou causas, sua forma, suas transformações e repetições, seu término;
2 – seu pressuposto básico é que “nada vem do nada e nada retorna ao nada”: não há criação a partir do nada...;
3 – o fundo imortal e perene de onde tudo brota e para onde tudo regressa é a phýsis, qualidade (s) primordial da origem e constituição de todos os seres;
4 – a preocupação central dos físicos ou cosmólogos é com o devir ou o vir a ser, isto é, com a kínesis, com o movimento (a transformação dos seres). A preocupação com o devir se expressa em questões variadas que podem ser sintetizadas em duas: a- como o uno/idêntico a si mesmo (a phýsis) se torna múltiplo e diferente de si mesmo (o kosmos)?; b – como o múltiplo e diferente (os seres do mundo) pode provir do uno/idêntico e a ele retornar? Em resumo: partindo do uno (a phýsis), pergunta-se como o múltiplo é possível; ou partindo do múltiplo (o kosmos), pergunta-se como o uno é possível;
5 – a preocupação com o devir ou o vir a ser levará, pouco a pouco, os filósofos a distinguir entre a aparência do mundo (os seres percebidos diretamente por nossos sentidos na experiência sensorial) e a verdade ou essência do mundo (o ser, alcançado exclusivamente pelo pensamento e, portanto, invisível como o antigo invisível dos poetas e adivinhos, mas um invisível racional e lógico). A phýsis, manifestação visível da arkhé invisível, oculta ou escondida, aparecem todas as coisas, mas sua verdadeira aparição será – no decorrer da filosofia pré-socrática – sua manifestação para o pensamento. A phýsis é vista pelo olho do espírito, embora percebida pelos olhos do corpo. A phýsis será visível para o pensamento e invisível para os órgãos dos sentidos, isto é, para a percepção sensorial.


Condições históricas-política para o surgimento dos Pré-Socráticos:

Nas cidades gregas da Ásia Menos, no final do século VI a. C. surge uma nova atitude diante dos questionamentos sobre a Natureza. Afasta-se da estrutura mítica tradicional para o lógos, para a razão. Condição da Filosofia, a razão surge como forma de reflexão inédita acerca da natureza, inaugurando uma maneira de pensar.
A reflexão filosófica veio à luz não graças a um milagre, mas sim em razão de circunstâncias geográficas e históricas muito precisas, nas quais o contexto e as contingências por ele engendradas favoreceram a mudança de orientação na forma de pensar do homem ocidental. É no âmbito da Cidade-Estado que se dá a emergência da razão; o nascimento do pensamento racional parece, pois estar
ligado ás relações sociais que se desenvolveram a partir da polis.
Entre os séculos VIII e VII a.C. surgem na Ásia menor as primeiras Cidades-Estado. Na realeza micênica – organização estatal que surgiu na Grécia por volta do século XII a.C. – o poder soberano era imposto pelo personagem real, o déspota divino, na organização da Cidade-Estado ou polis, o exercício político se fará em um meio social regido pela associação de cidadãos com direitos iguais, com um certo prazer em se associar – que constitui a amizade e a rivalidade – e um gosto especial pela troca de opiniões. Nessa sociedade de iguais a democracia se esboça: os cidadãos assumem o poder de decisão e constituem leis que irão zelar pelo


espírito igualitário que garantirá a expansão das cidades.
E nesse meio de sociabilidade a palavra (lógos) surge como o principal instrumento de poder. Apresentando-se como um bem comum, meio de comando e domínio sobre os outros, a palavra passou a ser um direito político adquirido pelos cidadãos que participavam da gestão da cidade. Mas essa palavra como bem comum precedeu a aparição das cidades. É uma característica que já está presente entre os guerreiros remanescentes da antiga sociedade micênica, que possuíam um tipo comum de vida social igualitária, em que os interesses comuns eram decididos no espaço público (na ágora).
Todas as questões sociais eram submetidas à discussão, ao debate contraditório, tornando-se privilégio de toda a população citadina livre do sexo masculino. Transportando o procedimento guerreiro para o âmbito democrático da Cidade-Estado e ampliando-o por meio de reformas políticas, os gregos forjaram, assim, um meio de opinião (dóxa, em grego) um lugar onde as discussões proliferavam, as decisões se estabeleciam, as escolhas dos governantes se davam. Na nova organização, pelo poder da palavra, a política tomou a forma de um ágon, isto é, de uma disputa oratória, de um combate sujeito a regras que se estabelecia na ágora.
Conhecer os poderes da palavra sobre o outro passou a ser do interesse de todos. O discurso foi se tornando objeto de investigação, e o homem procurou tomar consciência da linguagem, de suas regras e eficácias. Surgiu a retórica – disciplina que analisa o discurso como instrumento de vitória nas lutas da assembléia e do tribunal-, dando começo a um processo de racionalização do discurso ou lógos. Pela

política, o lógos tomou a emergência do discurso filosófico.
Os saberes se tornaram públicos, as normas foram difundidas, os cultos deixaram de ser privilégios de castas: os conhecimentos foram democratizados juntamente com os valores e as descobertas intelectuais.
A organização jurídica era regida por leis, elaboradas no domínio público pela participação dos cidadãos, a divulgação completa dessas leis, que iriam garantir a estabilidade do campo social, exigiu dos gregos a introdução da escrita. Assim, a produção de textos começou a se multiplicar, tornando a palavra escrita o meio, por excelência, de divulgação das normas e dos conhecimentos pertencentes à cultura comum.
Ao longo de dois séculos o comércio se desenvolveu, houve expansão marítima provocando uma produção maior de riquezas, melhorando a economia das cidades e suas condições dentro delas.
As cidades vão desenvolvendo um próspero intercambio comercial e cultural entre si. Assim da política ao desenvolvimento econômico, a expansão cultural se tornou extraordinária, condicionando todo um processo inevitável de racionalização do organismo social.
É nessa época e contexto que surgem os pensadores Pré-Socráticos.
A razão que emergiu com os Pré-Socráticos apresentava-se como um pensamento acerca da Natureza. Impunha-se aos homens como uma verdade sobre o mundo físico, não se constituindo propriedade particular de um determinado indivíduo. Trata-se de um lógos comum à Natureza, que se desvelava ao homem por meio da palavra filosófica.


Bibliografia:
CHAUI, Marilena. Introdução à História da Filosofia: dos Pré-Socráticos à Aristóteles. SP,
Companhia das Letras. 2ª ed, 2002. pp.15-53; pp.493-512.
MACIEL JN. Auterives. Pré-socráticos - a invenção da razão. SP. Odysseus. 2003.p.9-38.

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